Psicólogos alertam para impactos da violência urbana e policial em crianças negras

Em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de assassinatos de 29,2, a cada 100 mil habitantes. Entre os não negros a taxa foi de 11,2. A chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior a de uma pessoa não negra.
Os dados são do Atlas da Violência 2021, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Os negros foram as maiores vítimas de policiais: 78,9% das 6.416 pessoas mortas por policiais no ano passado foram negros.
As violências urbana e policial retratadas nesses dados podem ser constatadas cotidianamente por crianças e jovens negros nos noticiários e até mesmo nas redes sociais. Diante disto, psicólogos ouvidos pelo AFRO.TV ressaltam que, sem um trabalho de conscientização e de referências positivas, esse volume de violência em “corpos semelhantes” ao dessas crianças e jovens, que ainda estão em formação, pode gerar nelas impactos psicológicos danosos, que podem chegar até à vida adulta.
Dentre os impactos negativos que podem ser gerados estão: o medo de sair, de estar em lugares com muitas outras pessoas, medo da imprevisibilidade da vida em geral, baixa autoestima, transtorno de ansiedade, depressão, entre outros.
O psicólogo Adelmo Filho ressalta que, antes de tudo, é preciso pensar no conceito de “subjetividade”. De maneira resumida, seria a forma como as pessoas percebem o mundo. “É construída de diversas formas: as memórias afetivas, de comida, pelas pessoas próximas, pelo que se vê no ambiente, a forma que se comunica com outras pessoas e assim por diante”.
A subjetividade seria, assim, um processo cotidiano, sempre em construção, iniciado desde a infância. Adelmo conta que, no período de desenvolvimento infantil, essa construção pode sofrer impactos, por exemplo, ao ver o tempo inteiro notícias ou situações em que “os corpos semelhantes ao dela são violentados de alguma forma”.
“É muito diferente quando pessoas ao redor, que podem ser pais, tios ou avós, trazem, para a criança, esse processo de consciência sobre como as coisas funcionam na sociedade e as prepara para o mundo que vivenciarão. Outra coisa é não entender o que acontece, olhar e absorver o tempo inteiro que esses corpos semelhantes aos seus estão em risco”, acrescenta.
Adelmo conta que percebe em algumas crianças e adolescentes uma ideia de que são recatadas, tímidas. “Mas elas são silenciadas. As pessoas não dão atenção suficiente, agridem por causa da sua aparência ou algo do tipo. Elas vão ficando mais reclusas”. Com esse afastamento, a criança deixa de passar por processos importantes e passa a não desenvolver aspectos sociais como o vínculo.
“Essas crianças e jovens começam a pensar que sua existência não é algo positivo, não é algo que deve estar presente entre as outras pessoas. Acreditam que é um ser inferior e que podem ser ignorados de alguma forma. É cruel ouvir falar isso, mas é como algumas subjetividades negras acabam sendo construídas. Isso pode agravar para casos de ansiedade, depressão”, pontua.
Ele acredita que os pais podem fortalecer as crianças, com o processo de conscientização e empoderamento, “trabalhando como as coisas acontecem de uma forma que corresponda, com cuidado, às faixas etárias” e sempre trazer referências positivas sobre corpos negros. “É preciso fazer com que esses jovens possam pensar trajetórias diferentes do que a sociedade traça para a gente de alguma forma”.
Psicóloga e mestra em Cultura e Sociedade, Taíse Santos considera que os impactos das violências urbana e policial são “bastante prejudiciais”. “Pode haver um grande sofrimento psíquico, com mentes envolvidas em crenças negativas ao próprio respeito, com baixa autoestima, que em muitos casos acompanham pensamentos suicidas, somadas ao sentimento de medo e insegurança. Pode desencadear, por exemplo, transtornos de ansiedade, síndrome do pânico, depressão”, afirma.
Os sinais de que as crianças podem estar sofrendo variam, acrescenta Taíse. Algumas podem ficar mais quietas, tristes, sem querer contato com outras pessoas e com dificuldade de expressar o que sentem. Outras, arredias ou muito chorosas. Pode haver até somatização no corpo, apresentando febres, doenças de pele, dores no peito, tremores. Podem apresentar, ainda, desmotivação, apatia, problemas no sono.
Para tentar reverter esses impactos, os pais podem, diz Taíse, oferecer acolhimento, afeto e presença, além de fortalecer os vínculos familiares e compartilhar falas que signifiquem “a valorização da nossa gente negra”.
No entanto, os próprios pais podem ser afetados. Em diversas ocasiões, a influenciadora digital, atriz e jornalista Tia Má, por exemplo, já relatou que teme quando o filho sai de casa, com medo da violência urbana e policial contra negros.
“Muitas famílias sofrem e ficam com o emocional abalado. Podem buscar apoio entre seus pares, aprender a desenvolver recursos internos de autocuidado, respiração, para minimizar essas preocupações, bem como auxílio nas redes que ofertam serviços de apoio, orientação ou mesmo atendimento psicológico”, emenda Taíse, que já escreveu um livro sobre as experiências de jovens da Escola Olodum. Muitos, conta ela, traziam relatos sobre a violência que sofriam e os medos que lhes acometiam.
“Morte social” – Psicólogo e mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Djean Ribeiro ressalta que, além das “mortes matadas de pessoas negras”, há também a “morte social desses corpos negros”, que são assistidas pela sociedade, incluindo os jovens e crianças.
“São corpos negros que são diuturnamente colocados como subhumanos, aos quais são direcionados tratamentos indignos de uma pessoa cidadã. São pessoas negras em situação de rua, abarrotadas em filas para auxílio emergencial, disputando para acessar ossos bovinos em açougue ou mesmo o pilheiro de gente negra amontoada nas unidades prisionais”, enumera.
Para Ribeiro, os impactos dos dois tipos de mortes são “de diversas ordens, mas, sobretudo, psicológicos e sociais. “Essa relação do Estado com as pessoas negras é uma política não formalizada de morte, de imposições de limitações, que reduz o desejo de viver de forma potente além das fronteiras permitidas pelo Estado, que não faz chegar dispositivos de arte, lazer, saúde, educação, trabalho e produção de renda”, pontua.
Como consequência, são, segundo ele, possíveis efeitos: desinteresse no processo de escolarização e abandono precoce; inserção precoce no mercado informal de trabalho; criminalização de aspectos culturais e artísticos das comunidades negras, entre outros.
“Um produto subjetivo nas crianças e jovens negros e negras que são expostos a esses conteúdos é naturalizar que expandir fronteiras é algo do campo do impossível ou extremamente difícil. Visualizar e investir em trajetórias de sucesso, que precisam ser executadas a médio e longo prazo, para quem ocupa um corpo negro, ao qual notícias são veiculadas todos os dias como passíveis de serem tombados, interrompidos o direito de respirar, fica difícil”, acrescenta.
Com relação aos pais, emenda Ribeiro, é preciso não responsabilizá-los por algo como o racismo que é estruturante na organização da sociedade. “Um dos primeiros passos é trazer, para o diálogo cotidiano, reflexões sobre o racismo, identidade, direitos, desigualdades e caminhos”. Inserir, no cotidiano das crianças e da família, conteúdos mídiaticos que tragam protagonistas negros e o maior nível de diversidade possível é apontado por ele como uma forma de contrapor o imaginário social negativo.
por Anderson Sotero