Herdeiros processam empresa de biotecnologia por roubar células de mulher negra.”
Por MICHAEL KUNZELMAN Associated Press/Traduzido por Bruno Almeida AFRO.TV
04 de outubro, 2021
COLLEGE PARK, Maryland. (AP) – Na segunda-feira, dia 04 de outubro, os herdeiros de Henrietta Lacks processaram uma empresa de biotecnologia, acusando-a de vender células, que os médicos do Hospital Johns Hopkins tiraram da mulher negra em 1951 sem seu conhecimento ou consentimento, como parte de “um sistema médico racialmente injusto”.
As células do tecido retirado do tumor da mulher antes de sua morte por câncer do colo do útero tornaram-se as primeiras células humanas a serem clonadas com sucesso. Reproduzidas infinitamente desde então, as células HeLa se tornaram um pilar da medicina moderna, permitindo inúmeras inovações científicas e médicas, incluindo o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite, mapeamento genético e até mesmo vacinas contra a COVID-19.
As células de Henrietta foram colhidas e desenvolvidas muito antes do advento dos procedimentos de consentimento utilizados em medicina e pesquisa científica hoje, mas advogados de sua família afirmam que a Thermo Fisher Scientific Inc., de Waltham, Massachusetts, continuou a comercializar os resultados muito depois que as origens da linhagem de células HeLa se tornaram bem conhecidas.
“É escandaloso que esta empresa pense que eles têm direitos de propriedade intelectual sobre as células de sua avó. Porque eles têm direitos intelectuais sobre suas células e podem se beneficiar de bilhões de dólares quando sua família, sua carne e sangue, seus filhos negros, não recebem nada”, disse um dos advogados da família, Ben Crump, na segunda-feira, em uma coletiva de imprensa fora do tribunal federal em Baltimore.
Johns Hopkins disse que nunca vendeu ou lucrou com as linhagens celulares, mas que muitas empresas patentearam formas de utilizá-las. Crump disse que estes distribuidores ganharam bilhões com o material genético “roubado” do corpo de Henrietta. Outro advogado da família, Christopher Seeger, denunciou reivindicações semelhantes contra outras empresas.
A Thermo Fisher Scientific ” não precisava sentir-se muito só, porque em breve eles terão bastante companhia”, disse Seeger.
O processo pede ao tribunal que obrigue a Thermo Fisher Scientific a “entregar a totalidade de seus lucros líquidos obtidos com a comercialização da linha de células HeLa para os herdeiros de Henrietta Lacks”. Pede também que a Thermo Fisher Scientific seja permanentemente proibida de utilizar as células HeLa sem a permissão dos herdeiros.
Em seu website, a empresa diz que gera aproximadamente 35 bilhões de dólares em receita anual. Um porta-voz da empresa contatada por telefone não se pronunciou de imediato sobre a ação judicial.
Foi descoberto que as células da HeLa têm propriedades únicas. Enquanto a maioria das amostras de células morreu pouco depois de serem removidas do corpo, suas células sobreviveram e prosperaram em laboratórios. Esta característica excepcional tornou possível cultivar suas células indefinidamente – elas ficaram conhecidas como a primeira linha imortalizada de células humanas – tornando possível aos cientistas, em qualquer lugar, reproduzir estudos usando células idênticas.
A notável ciência envolvida – e o impacto sobre a família Lacks, alguns dos quais sofriam de doenças crônicas sem seguro de saúde – foram documentados em um livro best-seller de 2010, “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”. Oprah Winfrey retratou sua filha em um filme da HBO sobre a história. A ação judicial foi movida exatamente 70 anos após o dia da sua morte, em 04 de outubro de 1951.
“A exploração de Henrietta Lacks representa a luta infelizmente comum vivida pelo povo negro ao longo da história”, diz o processo. “De fato, o sofrimento negro tem alimentado inúmeros progressos e lucros médicos, sem justa compensação ou reconhecimento”. Vários estudos, tanto documentados como não documentados, têm se favorecido da desumanização do povo negro”.
Shobita Parthasarathy, professora de políticas públicas da Universidade de Michigan que pesquisou questões em torno da propriedade intelectual em biotecnologia, disse que o processo vem em um momento em que a família Lacks provavelmente terá um público simpático para suas reivindicações.
“Estamos em um momento, não apenas após o assassinato de George Floyd, mas também da pandemia, onde temos visto racismo estrutural em ação em todos os tipos de lugares”, disse ela. “Continuamos falando de racismo, e esse racismo está acontecendo também na ciência e na medicina”.
Um grupo de médicos brancos na Johns Hopkins na década de 1950 predou mulheres negras com câncer cervical, cortando amostras de tecido do colo uterino de seus pacientes sem o conhecimento ou consentimento de seus pacientes, diz a ação judicial.
A Johns Hopkins Medicine diz ter revisto suas interações com Henrietta Lacks e sua família durante mais de 50 anos, após a publicação do livro de Rebecca Skloot’s em 2010. A empresa diz que “nunca vendeu ou lucrou com a descoberta ou distribuição de células HeLa e não possui os direitos sobre a linha de células HeLa”, mas reconheceu uma responsabilidade ética.
Crump, um advogado de direitos civis baseado na Flórida, ganhou destaque nacional representando as famílias de Trayvon Martin, Michael Brown, Breonna Taylor e George Floyd – pessoas negras cujas mortes nas mãos da polícia e de vigilantes ajudaram a revitalizar um movimento nacional em direção à reforma policial e à justiça racial.
Seeger, um advogado corporativo baseado em Nova Jersey, representou milhares de ex-jogadores da NFL em um acordo de ação coletiva sobre concussões e foi um dos principais negociadores do acordo de emissões de diesel de US$ 21 bilhões da Volkswagen com proprietários de automóveis.
O site da Thermo Fisher Scientific diz que a empresa gera receita de quatro segmentos de negócios: ciências da vida, instrumentos analíticos, diagnósticos especializados e produtos e serviços de laboratório.
Um dos netos de Henrietta Lacks, Lawrence Lacks Jr., disse na coletiva de imprensa que a família está “unida” na defesa do caso.
“Já era hora”, disse outro neto, Ron Lacks. “Setenta anos depois, choramos por Henrietta Lacks, e celebraremos a retomada do controle do legado deixado por ela. Esta dor não será transmitida a outra geração de Lackses”.
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O repórter Aaron Morrison, da Associated Press, de Nova York, contribuiu para este artigo.